Existe no manual das pessoas que, de alguma forma, mantém
relação pessoal com a palavra "cultura" (ou "arte" etc) que
é proibido gostar de Romero Britto. Faça o teste: vá até uma faculdade de
artes, entre em uma sala de aula e grite "Romero Britto é um grande
artista!" e veja o que acontece. Isso pode ser feito também em galerias
tradicionais do eixo Rio-SP, em mesas de bares na Vila Madalena ou qualquer
ambiente onde prepondere um código de conduta
"intelectual/alternativo/artístico/arrojado/etc".
"vamos tentar ir com calma"
A hashtag #curteRomeroBritto era uma das qualidades
indesejáveis de um macho de acordo com o aplicativo Lulu, lembra? Se gostar de
Romero Britto está diminuindo a reputação masculina virtual, deve ser algo
terrível. Mais terrível ainda é o fato de você se importar com avaliações
eletrônicas da sua imagem virtual, o que é assunto pra outro texto.
Apesar de ser ridicularizado no contexto
"cultural", fora desse meio, Britto é um sucesso estrondoso. Suas
obras são estampadas em todo o tipo de produto, reproduções são vendidas aos
lotes, celebridades adquirem os originais. "A massa é ignorante e tem
péssimo gosto!" - é sempre mais fácil culpar as massas ou qualquer outra
entidade onipotente, como por exemplo o governo, deus etc. Principalmente
quando a ordem é esculhambar alguém.
Porém, antes de embarcar no próximo bonde do ódio você tem
que se perguntar: "por que eu odeio isso?" - o ódio é uma forma de
defesa. O que há de tão ameaçador no trabalho de Romero Britto para que a
comunidade artística/culta/acadêmica/intelectual/etc o rejeite de forma quase
unânime? Mais do que isso, por que aquelas pinturas alegres e coloridas são capazes
de fazer artistas e entendidos despejarem bile e veneno? Vamos analisar alguns
argumentos de seus detratores:
ARGUMENTO UM: "Ele faz sempre a mesma coisa."
Vou concordar que isso não está longe da verdade; alguém
desenvolveu um aplicativo para Google Glass que oculta obras de Britto e
substitui por grandes mestres da pintura (anote esse pensamento, vamos usar
mais tarde). Se um aplicativo de software consegue identificar obras de Romero
Britto, de fato existe um padrão por trás de suas obras, coisa que
eventualmente surge disfarçada pelo nome "estilo".
Meditemos na palavra "estilo". Estilo, stilus, é o
nome de uma ferramenta antiga, hoje o que temos de mais próximo é o estilete.
Estilos eram usados para escrever em placas de argila (escrita cuneiforme) por
romanos e outros povos. Esse tipo de trabalho manual carregava a marca
individual da pessoa que o fazia; a palavra "estilo" acabou sendo
associada ao jeito particular de cada um de criar ou executar determinadas
tarefas.
O artista Akira Umeda um dia compartilhou as seguintes
considerações:
"No terreno da música pop, "rock" é, desde há
muito, um ajuntamento de letras que não aponta para nada além de uma classificação
esgarçada: aponta, portanto, para "qualquer coisa", ou seja, não
aponta. Sem pontas, estas letras não configuram "estilo": um estilo,
como se sabe, tem ponta que fere, rasga e corta. Assim, coisas associadas a
"rock" são "qualquer coisa que não fere, rasga e corta". O
ajuntamento de indivíduos "Guns N 'Roses", em turnê por cidades
brasileiras, equivale ao ajuntamento de letras "rock". O ajuntamento
de multidões em torno destes indivíduos e destas letras produz uma imagem da
realidade atual cuja vacuidade não tem sido apontada."
A arte contemporânea, assim como o rock, é um conceito
esgarçado, aponta para qualquer coisa; qualquer tipo de ação, desde que
justificada como prática artística (ou seja, feita por artistas), cabe no
conceito de "arte contemporânea". Há menos de um século atrás a arte
era, sim, um campo onde os "estilos" ou "ismos" apontavam
para alguma coisa (cubismo, surrealismo, dadaísmo etc) em detrimento de outras,
ou seja, rasgando/ferindo/cortando.
Hoje a arte contemporânea aceita que tudo pode ser uma obra
de arte, desde deixar um cão morrer, passando por fazer um letreiro luminoso
com letras de pixação até perder a virgindade, desde que sejam feitas num
contexto "artístico" (o que muitas vezes quer dizer: dentro de uma galeria)
- eu não sou contra isso, já vou adiantando. Só estou perguntando: se a arte
contemporânea aceita todos os discursos, por que, então, proibir Romero Britto
de entrar?
Um fato curioso é que, se você for uma pessoa que se
interessa por arte e eu gritar "homens amarelos!", você vai gritar
"Os Gêmeos" em vez de "Os Simpsons". Você não sabe o que
esperar d'Os Gêmeos? Eles ganharam um avião pra pintar, com vários temas
implícitos (copa do mundo, futebol, seleção, Brasil etc) e eles pintaram...
você sabe o que eles pintaram.
A repetição é um dos fatores do estilo - há quem diga que
"estilo" é um nome bonitinho para "repetição". É por isso
que nós sabemos mais ou menos (ou exatamente) o que esperar de determinados
artistas; em diferentes obras há elementos repetidos que nos fazem identificar
qual trabalho é de quem. Muitos artistas em estado de graça no meio culto estão
com a tecla "repeat" apertada há anos - o que não é necessariamente
ruim, mas também não é necessariamente bom, etc.
A repetição, portanto, é um argumento inválido para
desqualificar o trabalho de Britto, visto que isso seria desqualificar o
trabalho de boa parte dos artistas reconhecidos como legítimos em atividade
hoje. Deixe essa parte assentar por alguns instantes; pense na gravidade disso,
principalmente se você for artista e se você for um repetidor.
ARGUMENTO DOIS: "Seu trabalho não tem
profundidade."
Uma das fundações da percepção popular a respeito de
artistas é a suposição que artistas possuem uma sensibilidade mais apurada que
a média, e por isso são capazes de materializar aspectos da vida que passariam
sem serem notadas pelas outras pessoas.
Seguindo essa lógica, o argumento de alguns é que o trabalho
de Romero Britto é desconectado da realidade, não instiga a reflexão, não
"problematiza" (palavra favorita de 8 entre 10 curadores e críticos
de arte) nenhum "aspecto da contemporaneidade" etc. Vilém Flusser, no
texto "Coincidência incrível", está falando sobre a fé, tecnologia e
ciência::
Se digo: "Amanhã nascerá, em vez do sol, um queijo de
Minas para iluminar a Terra", terei dido uma absurdidade. Mas se digo:
"Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminou a Terra", terei
articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo de Minas nasceu. As teorias
astronômicas esperavam pelo nascer do Sol, mas essas teorias são apenas
sistemas hipotéticos incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. (...)
O queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo contrário, a
eficiência do método científico como captação da "realidade".
Assim também é a fé na arte contemporânea. Qualquer proposta
é válida, desde que haja um alinhamento teórico coerente, desde que o artista
declare um ato ou resultado como obra de arte, legitimados pela fé na arte.
Portanto, se um belo dia, Romero Britto sair de seu atelier e declarar que seu
trabalho é um "questionamento acerca da banalidade dos signos e do mercado
de consumo, inserindo ícones irrelevantes no mercado da arte, que
necessariamente irá validá-los", ele terá legitimado seu trabalho enquanto
arte contemporânea.
Pior ainda: se um curador montar uma exposição contendo
trabalhos de Cildo Meireles, Nelson Leirner, Andy Warhol E Romero Britto
(heresia, eu sei), e afirmar que se trata de um conjunto de obras que
questionam a fronteira entre "arte" e "indústria cultural",
esse discurso, dentro do contexto da arte, teria que ser aceito como legítimo
também. Você poderia até não gostar, mas teria que engolir. O milho e a soja
estão aí pra te ajudar nessa parte.
ARGUMENTO TRÊS: "O trabalho de Romero Britto é
inflacionado, superfaturado, não vale o quanto custa."
Em algum momento do ano passado, a revista Veja São Paulo
atirou um homem aos leões. Alexander de Almeida foi usado para transmitir uma
mensagem. Foi inventado um nome-slogan para ele - "o rei do
camarote". Esse tipo de nomenclatura ou apelido tem um propósito. Você se
esqueceria rapidamente do nome Alexander de Almeida, mas não se esquecerá tão
cedo do "rei do camarote".
Eu assisti a matéria e, por alguns instantes, lamentei pelo
destino do rei do camarote. É evidente que ele não sabia que estava sendo
usado. Ele foi atirado à massa como um verdadeiro "boi de piranha", é
muito fácil sentir raiva dele: ele é do sexo masculino, branco e rico, então
você não corre risco algum de sentir culpa; quando você não precisa refletir se
deve ou não embarcar no bonde do ódio, suba de uma vez, não é mesmo?
hateorade pra galera
Um "pequeno detalhe" foi, propositalmente,
excluído da reportagem sobre o rei do camarote. Em momento algum se fala sobre
a profissão de Alexander, o que ele faz para ganhar tanto dinheiro.
"Mentira! Na matéria eles falam sobre isso sim: ele é empresário." -
ah sim, empresário, o cargo mais genérico de todos. Aquele senhor atrás do
balcão daquele boteco sujo também é um empresário, e ele nunca ganhará na vida
inteira o que Alexander gasta em uma madrugada.
A mensagem perigosa por trás da matéria do rei do camarote é
a de que a identidade de uma pessoa não precisa estar associada ao que ela faz
no dia a dia. O rei do camarote é riquíssimo e gosta de esbanjar seu dinheiro,
mas matéria parou aí; nada é dito sobre a vida profissional de Alexander, ou
seja não importa de onde esse dinheiro vem, ele simplesmente o possui. A
mensagem é: o dinheiro que uma pessoa tem está menos associado ao que a pessoa
faz e mais associado ao que ela é. Eu sei que é difícil de entender como isso é
possivelmente um problema.
Matéria disponível totalmente em: http://www.ideafixa.com/por-que-e-facil-odiar-romero-britto/
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