quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Por que é fácil odiar Romero Britto?

Existe no manual das pessoas que, de alguma forma, mantém relação pessoal com a palavra "cultura" (ou "arte" etc) que é proibido gostar de Romero Britto. Faça o teste: vá até uma faculdade de artes, entre em uma sala de aula e grite "Romero Britto é um grande artista!" e veja o que acontece. Isso pode ser feito também em galerias tradicionais do eixo Rio-SP, em mesas de bares na Vila Madalena ou qualquer ambiente onde prepondere um código de conduta "intelectual/alternativo/artístico/arrojado/etc".

"vamos tentar ir com calma"

A hashtag #curteRomeroBritto era uma das qualidades indesejáveis de um macho de acordo com o aplicativo Lulu, lembra? Se gostar de Romero Britto está diminuindo a reputação masculina virtual, deve ser algo terrível. Mais terrível ainda é o fato de você se importar com avaliações eletrônicas da sua imagem virtual, o que é assunto pra outro texto.

Apesar de ser ridicularizado no contexto "cultural", fora desse meio, Britto é um sucesso estrondoso. Suas obras são estampadas em todo o tipo de produto, reproduções são vendidas aos lotes, celebridades adquirem os originais. "A massa é ignorante e tem péssimo gosto!" - é sempre mais fácil culpar as massas ou qualquer outra entidade onipotente, como por exemplo o governo, deus etc. Principalmente quando a ordem é esculhambar alguém.

Porém, antes de embarcar no próximo bonde do ódio você tem que se perguntar: "por que eu odeio isso?" - o ódio é uma forma de defesa. O que há de tão ameaçador no trabalho de Romero Britto para que a comunidade artística/culta/acadêmica/intelectual/etc o rejeite de forma quase unânime? Mais do que isso, por que aquelas pinturas alegres e coloridas são capazes de fazer artistas e entendidos despejarem bile e veneno? Vamos analisar alguns argumentos de seus detratores:

ARGUMENTO UM: "Ele faz sempre a mesma coisa."

Vou concordar que isso não está longe da verdade; alguém desenvolveu um aplicativo para Google Glass que oculta obras de Britto e substitui por grandes mestres da pintura (anote esse pensamento, vamos usar mais tarde). Se um aplicativo de software consegue identificar obras de Romero Britto, de fato existe um padrão por trás de suas obras, coisa que eventualmente surge disfarçada pelo nome "estilo".

Meditemos na palavra "estilo". Estilo, stilus, é o nome de uma ferramenta antiga, hoje o que temos de mais próximo é o estilete. Estilos eram usados para escrever em placas de argila (escrita cuneiforme) por romanos e outros povos. Esse tipo de trabalho manual carregava a marca individual da pessoa que o fazia; a palavra "estilo" acabou sendo associada ao jeito particular de cada um de criar ou executar determinadas tarefas.

O artista Akira Umeda um dia compartilhou as seguintes considerações:

"No terreno da música pop, "rock" é, desde há muito, um ajuntamento de letras que não aponta para nada além de uma classificação esgarçada: aponta, portanto, para "qualquer coisa", ou seja, não aponta. Sem pontas, estas letras não configuram "estilo": um estilo, como se sabe, tem ponta que fere, rasga e corta. Assim, coisas associadas a "rock" são "qualquer coisa que não fere, rasga e corta". O ajuntamento de indivíduos "Guns N 'Roses", em turnê por cidades brasileiras, equivale ao ajuntamento de letras "rock". O ajuntamento de multidões em torno destes indivíduos e destas letras produz uma imagem da realidade atual cuja vacuidade não tem sido apontada."

A arte contemporânea, assim como o rock, é um conceito esgarçado, aponta para qualquer coisa; qualquer tipo de ação, desde que justificada como prática artística (ou seja, feita por artistas), cabe no conceito de "arte contemporânea". Há menos de um século atrás a arte era, sim, um campo onde os "estilos" ou "ismos" apontavam para alguma coisa (cubismo, surrealismo, dadaísmo etc) em detrimento de outras, ou seja, rasgando/ferindo/cortando.

Hoje a arte contemporânea aceita que tudo pode ser uma obra de arte, desde deixar um cão morrer, passando por fazer um letreiro luminoso com letras de pixação até perder a virgindade, desde que sejam feitas num contexto "artístico" (o que muitas vezes quer dizer: dentro de uma galeria) - eu não sou contra isso, já vou adiantando. Só estou perguntando: se a arte contemporânea aceita todos os discursos, por que, então, proibir Romero Britto de entrar?

Um fato curioso é que, se você for uma pessoa que se interessa por arte e eu gritar "homens amarelos!", você vai gritar "Os Gêmeos" em vez de "Os Simpsons". Você não sabe o que esperar d'Os Gêmeos? Eles ganharam um avião pra pintar, com vários temas implícitos (copa do mundo, futebol, seleção, Brasil etc) e eles pintaram... você sabe o que eles pintaram.

A repetição é um dos fatores do estilo - há quem diga que "estilo" é um nome bonitinho para "repetição". É por isso que nós sabemos mais ou menos (ou exatamente) o que esperar de determinados artistas; em diferentes obras há elementos repetidos que nos fazem identificar qual trabalho é de quem. Muitos artistas em estado de graça no meio culto estão com a tecla "repeat" apertada há anos - o que não é necessariamente ruim, mas também não é necessariamente bom, etc.

A repetição, portanto, é um argumento inválido para desqualificar o trabalho de Britto, visto que isso seria desqualificar o trabalho de boa parte dos artistas reconhecidos como legítimos em atividade hoje. Deixe essa parte assentar por alguns instantes; pense na gravidade disso, principalmente se você for artista e se você for um repetidor.

ARGUMENTO DOIS: "Seu trabalho não tem profundidade."

Uma das fundações da percepção popular a respeito de artistas é a suposição que artistas possuem uma sensibilidade mais apurada que a média, e por isso são capazes de materializar aspectos da vida que passariam sem serem notadas pelas outras pessoas.

Seguindo essa lógica, o argumento de alguns é que o trabalho de Romero Britto é desconectado da realidade, não instiga a reflexão, não "problematiza" (palavra favorita de 8 entre 10 curadores e críticos de arte) nenhum "aspecto da contemporaneidade" etc. Vilém Flusser, no texto "Coincidência incrível", está falando sobre a fé, tecnologia e ciência::

Se digo: "Amanhã nascerá, em vez do sol, um queijo de Minas para iluminar a Terra", terei dido uma absurdidade. Mas se digo: "Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminou a Terra", terei articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo de Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavam pelo nascer do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. (...) O queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo contrário, a eficiência do método científico como captação da "realidade".

Assim também é a fé na arte contemporânea. Qualquer proposta é válida, desde que haja um alinhamento teórico coerente, desde que o artista declare um ato ou resultado como obra de arte, legitimados pela fé na arte. Portanto, se um belo dia, Romero Britto sair de seu atelier e declarar que seu trabalho é um "questionamento acerca da banalidade dos signos e do mercado de consumo, inserindo ícones irrelevantes no mercado da arte, que necessariamente irá validá-los", ele terá legitimado seu trabalho enquanto arte contemporânea.

Pior ainda: se um curador montar uma exposição contendo trabalhos de Cildo Meireles, Nelson Leirner, Andy Warhol E Romero Britto (heresia, eu sei), e afirmar que se trata de um conjunto de obras que questionam a fronteira entre "arte" e "indústria cultural", esse discurso, dentro do contexto da arte, teria que ser aceito como legítimo também. Você poderia até não gostar, mas teria que engolir. O milho e a soja estão aí pra te ajudar nessa parte.

ARGUMENTO TRÊS: "O trabalho de Romero Britto é inflacionado, superfaturado, não vale o quanto custa."

Em algum momento do ano passado, a revista Veja São Paulo atirou um homem aos leões. Alexander de Almeida foi usado para transmitir uma mensagem. Foi inventado um nome-slogan para ele - "o rei do camarote". Esse tipo de nomenclatura ou apelido tem um propósito. Você se esqueceria rapidamente do nome Alexander de Almeida, mas não se esquecerá tão cedo do "rei do camarote".

Eu assisti a matéria e, por alguns instantes, lamentei pelo destino do rei do camarote. É evidente que ele não sabia que estava sendo usado. Ele foi atirado à massa como um verdadeiro "boi de piranha", é muito fácil sentir raiva dele: ele é do sexo masculino, branco e rico, então você não corre risco algum de sentir culpa; quando você não precisa refletir se deve ou não embarcar no bonde do ódio, suba de uma vez, não é mesmo?

hateorade pra galera

Um "pequeno detalhe" foi, propositalmente, excluído da reportagem sobre o rei do camarote. Em momento algum se fala sobre a profissão de Alexander, o que ele faz para ganhar tanto dinheiro. "Mentira! Na matéria eles falam sobre isso sim: ele é empresário." - ah sim, empresário, o cargo mais genérico de todos. Aquele senhor atrás do balcão daquele boteco sujo também é um empresário, e ele nunca ganhará na vida inteira o que Alexander gasta em uma madrugada.


A mensagem perigosa por trás da matéria do rei do camarote é a de que a identidade de uma pessoa não precisa estar associada ao que ela faz no dia a dia. O rei do camarote é riquíssimo e gosta de esbanjar seu dinheiro, mas matéria parou aí; nada é dito sobre a vida profissional de Alexander, ou seja não importa de onde esse dinheiro vem, ele simplesmente o possui. A mensagem é: o dinheiro que uma pessoa tem está menos associado ao que a pessoa faz e mais associado ao que ela é. Eu sei que é difícil de entender como isso é possivelmente um problema.


Matéria disponível totalmente em: http://www.ideafixa.com/por-que-e-facil-odiar-romero-britto/

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